3.4.- Violenta e Convulsionada Transformação da Escola.

Desde 1917 até o mês de setembro de 1942, a escola de Forquilhinha era mantida exclusivamente pela União Escolar de Forquilhinha, i.e., com o pagamento das mensalidades pelos pais dos alunos e contribuições espontâneas de outros, para manter os professores. Não foi sem grandes sacrifícios dos pais e dos professores manter a escola particular por vinte e cinco anos. Não se tinha em mira outro objetivo, a não ser proporcionar aos filhos uma boa escola, em que pudessem aprender algo, o que eles, os pais, não puderam obter durante quase um século de permanência no Brasil.

Obedecidas às leis reguladoras do ensino, tanto federais, como estaduais, que exigiam da escola particular fossem ensinados o vernáculo, Português, História do Brasil e Geografia, era facultado o ensino de línguas estrangeiras, em nosso caso a língua alemã. Periodicamente a escola era visitada pelos inspetores escolares do Estado, o inspetor Trindade, que por diversas vezes inspecionou a nossa escola, Humberto Hoffmann e outros. Sempre, após terem examinado a estruturação da escola e os conhecimentos dos alunos nas matérias exigidas, lançavam no livro próprio um termo de visita, dando os maiores elogios da boa marcha da escola e dando diretrizes a serem observadas para o futuro. É de lamentar que também este livro de termos de visita dos inspetores não existe mais por motivos que adiante veremos.

Veio a participação forçada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. No dia após, ou talvez dias após a declaração da guerra, apareceu em Forquilhinha, o delegado, não o delegado regional, investigadores, secretas, policiais e muitos outros do zé povinho, ordenando o fechamento da casa comercial da Sociedade União Colonial, que se abria sempre entre a primeira e a segunda missa, a fim de proporcionar aos colonos a oportunidade de se abastecerem. Obedecida a ordem dada, dirigiram-se rumo à igreja e ao Colégio das Irmãs. Investigaram o terreno em torno da igreja e da casa paroquial ainda em construção, penetraram na igreja e na

casa paroquial, farejando em todos os cantos, subiram à torre em busca não sabemos do quê. O mesmo repetiram no Colégio das Irmãs.

Por volta do meio-dia, voltaram à sede da Sociedade União Colonial, que se achava fechada, mas que era habitada no segundo andar pelas famílias de Alfredo Steiner e Adolfo Back, onde pediram um almoço. Parte da caravana já partira para Criciúma. Alfredo Steiner mantinha na parte térrea a cozinha e a sala de jantar. Aqui lhes foi fornecido o almoço desejado. Após o almoço, o investigador exigiu da gerência o livro de matrícula dos associados da Sociedade União Colonial. De posse do livro, encontrando quase que exclusivamente pessoas com o sobrenome de origem alemã, mas de nacionalidade brasileira, marcada na respectiva coluna, afinal veio a encontrar o único registrado como alemão

Era Antônio Papior, que, depois da Primeira Guerra Mundial, na década de 1930 veio ao Brasil, deixando a família toda na Alemanha, por não ter os meios para trazê-la consigo. Papior era de profissão carniceiro. Depois de ter conseguido emprego na fabriqueta de banha de Gabriel Arns e este ter-lhe adiantado dinheiro, vieram a esposa e dois filhos.

Quando havia matança de suínos, ele trabalhava na fábrica, trabalho este que executava com maestria. Esbarrando o nosso investigado com a nacionalidade "alemã" no livro de matrícula, disse "Lá nós vamos", supondo encontrar uma pista do que procurava. Residia Papior num casebre de madeira no sítio pertencente a Gabriel Arns, onde plantava a sua lavoura, quando não havia serviço de seu oficio. Chegando à morada de Papior, acordaram-no uma boa soneca de domingo de tarde, invadiram a casinha, examinando os armários, caixas e malas, nada encontrando que pudesse pôr em perigo a segurança nacional, deparando porém por cima das linhas algumas tábuas, lá subiram e encontraram velhos jornais alemães, todo empoeirados. Com um "até logo"se despediram.

Na segunda-feira subseqüente, inspetor de quarteirão, Bernardo Kestering apareceu com ordens superiores de fechar escola, levando as chaves. Já a terça-feira, à tarde, estava reservada para as maiores das barbaridades. Dois automóveis com quatro a seis pessoas, não recordamos o exato número, rumaram a Forquilhinha. Primeiro entraram na propriedade de Gabriel Backes, pois que este tinha no terreiro, junto à casa, erguido um poste de uns dez metros de altura, no qual colocou um pára-raios. A haste do pára-raios, no sol reluzente, foi avistada da estrada e precisava ser examinada. Verificado que se tratava de um simples pára-raios, ainda examinaram o interior da casa e nada encontrando de perigoso, foram embora sem mais amolestamentos.

Um automóvel com duas pessoas ficou na casa do professor Jacó Arns. Na busca que fizeram, encontraram uma pequena biblioteca, contendo livros didáticos em alemão, que ele durante os anos de seu magistério, vinte e sete anos, adquirira; foram amontoando os livros e levando para o automóvel. Finalmente, disseram-lhe que devia segui-los, não como preso, mas para a constatação da veracidade do que ele, Jacó, afirmava do conteúdo dos livros.

O outro automóvel rumou diretamente a casa de Papior e prenderam-no, trazendo preso no mesmo automóvel. Passando pela de Ricardo Steiner, não sabemos, por que má sorte,encontraram uma espingarda de caça do tipo mais simples possível, que nem lhe pertencia e que mantinha em sua casa para matar os gaviões que carregavam os pintos do terreiro, e mais um jornal nacional que trazia um mapa linha de frente dos beligerantes na França. Motivo bastante para prenderem a arma de fogo e Ricardo Steiner.

Um dos automóveis conduziu os presos para Criciúma e o outro chegou ao anoitecer à loja da Sociedade União Colonial, exigindo da gerencia a apresentação de uma arma de muitos tiros, como diziam, sem no entanto dar o nome da arma. "Dita arma trazíamos escondida num porão, e em certa ocasião, o gerente mostrara a arma a pessoas de Criciúma, e um pedreiro de Criciúma que aqui trabalhara, um tal José... José", repetia este nome sem dizer o sobrenome, sabia perfeitamente onde se encontrava o porão... e a mortífera arma." Como não existia nem arma nem porão, nada se temia e nada havia para ser entregue. No entanto, ameaçava prender o gerente, aconselhando dizer verdade e entregar a arma; pois, de qualquer forma a arma seria descoberta e então o caso se tornaria extremamente delicado para o gerente. Se gerente continuasse a opor-se à entrega da arma, eles iriam a Criciúma buscar o tal José e que então perderíamos a decantada arma e o gerente iria preso inafiançável. Como o gerente ficava inabalável na afirmativa de não existir arma em porão nem em outro qualquer lugar, começaram a insistir na apresentação do pretenso porão. A insistência foi a tal ponto que, afinal, o gerente se lembrou que havia dentro da loja no assoalho duas portinholas" alçapões que davam entrada para debaixo do assoalho. Um era usado para guardar bebidas para se conservarem mais frescas no verão; pois, geladeira não havia. E a outra não era usada. Naturalmente queriam ver estas entradas, penetrando debaixo do assoalho, que aliás era de pouca altura. Investigaram-nas, farejando aqui e ali, nada encontrando, a não ser algumas teias de aranha

presas nos cabelos.

Visivelmente vexados e com mais e com mais gentilezas, pois que a arrogância fora insuportável, quiseram verificar as residências Alfredo Steiner e Adolfo Back no primeiro andar do mesmo prédio. Os quartos, os armários, guarda-roupas, tudo, enfim, foi visado e revisado e remexido, os colchões das camas removidos, Quando chegaram ao quarto da velhinha, sogra dos ocupantes do prédio, que se achava doente e deitada na cama, invadiram-no, fizeram o mesmo que vinham fazendo nos outros quartos. Visivelmente um tanto envergonhados de nada encontrar do que procuravam, foram embora consternados.

E os nossos três presos, chegando a Criciúma, foram levados imediatamente para a cadeia, sem os submeterem a um interrogatório e sem qualquer justificava da prisão. Estavam os três presos numa salinha desprovida de qualquer objeto de que um ser humano necessita, mesmo o maior criminoso. Era uma salinha talvez suficiente para prender, encerrar os porcos por alguns dias. Após quatro dias de reclusão, Ricardo Steiner foi libertado. Os outros dois, com mais um preso em Criciúma, cujo nome não recordamos, foram conduzidos da cadeia, na hora do meio-dia, em que as aulas foram concluídas e a criançada em plena rua acompanhava os presos, gritando impropérios aos detentos, para a estação do ônibus, onde lhes foi destinado o "galinheiro". Chegando a Florianópolis, foram de imediato levados para o campo de concentração, onde já se encontrava grande número de presos, na maior parte pastores luteranos de Blumenau.

Não pretendemos descrever o campo de concentração nas redondezas da capital; mas, no entanto, podemos afirmar que em parte se assemelhava aos do brutal e demoníaco ditador Hitler. Os campos de concentração aqui preparados é e será mácula em nossa História, onde tantos inocentes foram fustigados por longos meses. A época excepcional não justifica prender a ninguém sem culpa formada ou comprovada, e atormentar e angustiar um ser humano, como foi o caso de nossos presos. Por quatro longos meses os nossos detentos sofreram os maiores vexames, sem que um dia fossem submetidos a um interrogatório para se certificarem da culpabilidade de cada um. Também ninguém lhes disse qual o delito que haviam cometido. No fim de quatro meses, após a festa de Natal, primeiro Jacó Arns e, semanas

depois, Antônio Papior foram libertados e puderam vir para os seus lares. O estado físico de ambos os presos era irreconhecível e durante muito tempo foram incapazes de trabalhar.Muitos dos futuros leitores dessas reminiscências perguntarão:

-Mas, afinal, que motivos levaram a tantas perseguições e molestamentos?

A estes respondemos:

-Inimigos baratos. O delegado de Criciúma, que acompanhou a primeira diligência, a de domingo, longe de ser o nosso inimigo, só pessoas de Criciúma que instigavam as massas e autoridades contra a nossa

comunidade, onde havia muitos descendentes de alemães. A todas essas pessoas não devíamos gratidão nem consideração nem sequer respeito. Um deles comparecera à nossa escola e numa demonstração dos conhecimentos dos alunos em Geografia e História do Brasil, fez grandes elogios referentes ao saber dos alunos. Parte desses atiçadores tinha bastantes relações com o povo de Forquilhinha. Acusavam-nos pelo fato de falarmos e ensinarmos o idioma alemão. Se houve crime neste particular, o crime não era nosso, mas dos governos que, durante um século inteiro, nos deixaram no abandono em todos os sentidos. Uma ligação direta ou indireta com o país de origem, a Alemanha, não existia e muito menos ainda com a Alemanha de Hitler.

Imaginamos, pois, para terminar este capítulo triste e negro da história de Forquilhinha, quantas pessoas, de todas as origens das redondezas, que hoje se dizem alfabetizadas, passaram pela escola do professor Jacó Arns, nos longos vinte e sete anos de árduos e mal-remunerados trabalhos à testa da escola. Quanto fere a ingratidão o coração de um benfeitor! Amargurado e impossibilitado ao trabalho por muito tempo e, proibido de lecionar nos tempos da ditadura, não podendo assumir a escola que tantos anos dirigiu com carinho e amor, sentia-se oprimido, para por aqui ficar, onde as reminiscências eram amargas. Depois de recuperar-se, decidiu não mais prosseguir por aqui; vendeu todas as suas propriedades e mudou-se com a família para Hulha Negra, nas

imediações de Bagé no Rio Grande do Sul, onde nada lhe pudesse trazer à memória os cruéis episódios de 1942, para lá se dedicar ao plantio de trigo, principal cultura naquela zona. Sua partida se deu em 26 de março de 1946.

O prof. Jacó Arns, apesar de seu gênio agitado, era excelente mestre de escola, profissão a que se dedicava com todo o amor e idealismo e força de vontade, principalmente às crianças do primeiro e segundo anos, que eram de sua preferência.

Cabe ainda ressaltar, entre os tristes episódios de que Forquilhinha foi palco em 1942, o fato de os mencionados investigadores, por diversas vezes, fazerem batidas, até de noite, em diversas residências, mas principalmente na igreja e nos seus arredores. De início não era do conhecimento dos apavorados habitantes desta localidade, mas pouco a pouco se ia descobrindo o que se estava fabulando por Criciúma: é que mantínhamos num subterrâneo, um verdadeiro arsenal de armas de guerra. Pobre Forquilhinha, de cujos moradores nem todos tinham armas de fogo para caçar os gambás, quando batiam nas galinhas! O porquê das investidas contra a igreja e seus arredores, presume-se pelo fato de ter-se, quando da vinda do Padre Paulo Linnartz, acrescentado o presbitério à nave da igreja, já construída em 1930. Com o declive do terreno por um lado e pelo fato de o altar-mor se achar bem alto, em que sete degraus levavam para o pedestal do altar, ficava uma altura de quase dois metros do assoalho até o chão; surgira a idéia que aquele vão se poderia aproveitar para um depósito para o vinho de missas e mesmo de outros objetos. Essa sugestão fora feita na presença dos pedreiros de Criciúma. Eram os pedreiros Antônio Português, seu filho e outros. Antes de colocar o assoalho, aplainou-se o chão e, após, colocou-se o assoalho, sem que providenciasse uma entrada para o planejado porão. Provavelmente foi este o subterrâneo tão procurado. Como não se encontrou entrada assoalho, foram sondadas as redondezas para encontrar nas imediações uma entrada subterrânea.

Enquanto isto aqui se passava, um filho de Forquilhinha, Adalberto Arns, filho de Augusto Arns, era convocado para ir aos campo de guerra na Itália.

Apavorados e amedrontados e indefesos em todos os lares, sob ordem investigadores, busca de livros; os livros, (até os de orações cantos não eram excluídos), os livros de dados desde a imigração, há mais de um século" também os da fundação de Forquilhinha, o arquivo da escola, tudo, enfim, era amontoado e pesarosamente largado no fogo. Eram estes livros e tudo que foi queimado, objetos de estimação, inocentes e inofensivos. Podemos garantir que nenhum Mein Kampf de Hitler fora queimado; nesta ocasião, por não existir em toda a colônia.